segunda-feira, 26 de maio de 2008

Janela Entre Dois Mundos


Abriu a janela, como de costume de todas as manhãs. Sentou na mesma cadeira, seguiu o mesmo ritual de sempre, para realizar a mesma tarefa de todos os dias, desde muito tempo atrás.

A janela em frente pertencia a uma outra casa, bela, com muitos cômodos, árvores a sua volta, poucos andares, de cor clara, proveniente do século passado e que escondia entre as paredes a mais doce criatura que já vira, mesmo não vendo outras por aí, já que vivia trancafiado na sua grandiosa casa.

Ele tinha uma idade bem avançada a dela. A viu crescer, a amadurecer. Acompanhou, de longe, muitos sorrisos e muitos choros seus. Sabia um pouco da sua vida, esta que passara naquelas janelas, naquela porta, naquela rua. E apesar de saber pouco, sabia, o que para ele era suficiente para tamanho encantamento.

Não era necessário ver televisão, pois já tinha uma programação exclusiva só para ele.

Fofoqueiro por saber da vida dela? Podia até ser, e os outros poderiam o chamar do que quiser, nada o faria mudar seu velho hábito. Tão velho quanto ele, e percebia isso quando olhava para ela, agora adulta, mulher feita, ainda mais bonita como quando era criança.

Mesmo velho, solteiro, morando sozinho naquela casa grande, silenciosa e obscura (o que fazia parecer estar vazia) gostava daquele mundinho só seu, se sentia bem ali, sozinho com seus pensamentos e a companhia distante de Diana, e era feliz, apesar de não parecer, pois além de como vivia ali, não cuidava de si, estava sempre desarrumado, bagunçado, com o cabelo despenteado, barba sem fazer, nem ao menos aparava, só muito raramente. Só era magro porque quase não comia. Passava mais horas olhando Diana do que se preocupando em comer. Só se alimentava, pois o vizinho de trás da sua casa, Óliver, sempre levava comida que, em troca, dava algum dinheiro. Ou às vezes, muito raramente, ia ao mercado. Nada importava mais que Diana, nem a si mesmo, só ela, mais ninguém, mais nada...

Sua paixão doentia, sua obsessão era tão grande que tomava conta de seu corpo e, principalmente, de sua mente.

Atrás de toda sua aparência horrível e a tristeza em seus olhos havia um homem bom e razoavelmente bonito, a ponto de encantar muitas mulheres, mas isto, nem ele mesmo sabia...

Foi naquele dia que as coisas começaram a mudar. As árvores, que haviam em volta da casa de Renato foram arrancadas, devido aos postes de luz, deixando a casa dele à mostra, como se tivesse saído de algum esconderijo em que Diana não pudesse ver. Renato desapontado com a surpresa, nada pôde fazer, nem mesmo reclamar com a Companhia de Luz.

Ela estava viajando em um congresso e quando voltou, como de se esperar, percebeu aquela magnífica casa que havia em frente a sua. Parou, observou com atenção e resolveu ver a casa por dentro. Como não morava ninguém ali, achou ela, resolveu procurar nas construtoras a chave da tal casa. Mas ao descobrir a notícia, de que sim, morava alguém ali, ficou intrigada. Não havia conseguido ingerir a notícia.

— Como em todos esses anos que moro aqui nunca percebi que mora alguém aqui nenhum sinal de mudança, nenhum movimento, nenhuma luz acesa...Como pode isso? – pensou Diana cada vez mais confusa

Não esperou mais nenhum momento, e caminhando depressa, tropeçando em suas próprias pernas e em seus pensamentos confusos foi à casa misteriosa.

Renato observava tudo e a cada passo que ela dava seu coração acelerava mais e mais, seus olhos ficavam maiores, de tão arregalados que estavam, suava frio, não sabia o que fazer em anos. Parecia um adolescente que amava pela primeira vez. A rotina era sempre a mesma, não havia o que mudar. Era sempre a mesma hora de chegada, mesma hora de saída, os mesmos dias para os mesmos compromissos para os mesmos locais. Era tudo igual, só uma vez ou outra que saia para outro lugar.

Os olhos dela observaram um pouco mais a casa, e por um instante pareceram ir de encontro aos dele, que agora deixavam cair gotas de lágrimas desesperadas. Um nervosismo tomou conta dele e de modo que se afastava dela, dentro de sua casa, ia esbarrando nos objetos que não via. Seus olhos não piscavam, não queria perder um segundo sequer da cena que, pela primeira vez, vivia com ela, sua amada de tantos anos... Pela primeira vez estava nervoso ao vê-la, desejava não a ver mais, mas estava concentrado demais para desviar sua atenção e mesmo que quisesse seus olhos não o obedeceriam.

Ouvia-se um barulho do lado de fora da casa, deixando Diana um pouco assustada e com medo, mas que agora acreditava que realmente morava alguém ali.

A cena seguinte durou segundos, mas para Renato pareceu ter durado minutos, muito mais do que realmente durou, como se fosse um filme assistido em câmera lenta, mas que este não havia pausado, muito menos dado stop. Um filme que ele tinha que assistir de qualquer maneira, ou melhor (ou seria pior?), teria de viver de qualquer maneira.

Diana tocou a campainha, aguardou um instante e voltou a tocar.

Enquanto isso no interior da casa havia um homem desesperado sem saber o que fazer, sem saber como reagir. Acalmou-se (pelo menos tentou), enxugou as lágrimas, olhou sua roupa, arrumou os cabelos com as mãos no espelho perto da porta, sentiu seu bafo e sentindo que não estava bom, pegou os chicletes que Óliver havia deixado ali, segurou a maçaneta tremendo com o coração quase saindo pela boca, e finalmente, não acreditando no que estava fazendo, abriu a porta. Um vento bateu em seu cabelo mostrando-lhe a face.

Ela se virou de imediato levando um susto. Olharam-se por um instante sem dizer nada. Não era preciso para Diana perceber os olhos tristes daquele homem que parecia ter um rosto bonito, e que só não dava para ver, pois sua barba, que começava a ficar grisalha, e seus longos cabelos escondiam.

Abriu um sorriso e lhe disse um “oi” - com sua voz doce.
— Oi – ele respondeu com a voz surpresamente calma e fria, segurando-se para não soltar a lágrima que queria escorrer de seus olhos.

Esperou ela lhe dizer mais alguma palavra com sua bela voz.
Procurou palavras, se enrolou, mas não sabia o que dizer. Não tinha pensando no que ia dizer ao chegar lá, nem mesmo imaginava como seria a pessoa que habitava aquela casa misteriosa. Foi direto ao ponto e explicou o que fora realmente fazer lá.

Abriu um sorriso, respondendo ao dela, e disse, mais uma vez surpreso com sua própria reação:
— Tudo bem, sem problemas.

Ele era um adulto, não tinha por quê ficar nervoso como um adolescente, apesar de, no momento, estar parecendo e se sentindo um.

Simpática como sempre fora, apresentou-se e puxou algum assunto, como lhe perguntar sobre a casa e um pouco sobre ele. Entrara na casa a convite dele (mesmo com a bagunça que havia), e conversaram por um bom tempo. De vez em quando ele não prestava atenção no que ela dizia e sim nos seus gestos, seu sorriso, suas expressões, em todos os detalhes. Fora embora depois que recebera um telefonema. Despediu-se e prometeu voltar.

Ao sair, ele pulou de felicidade como uma criança que acabara de ganhar aquele presente tão esperado de natal. Nunca se sentira tão feliz em sua vida desde de que perdera, na época de faculdade, a sua virgindade.

A partir daquele dia mudou. Não deixava sua casa mais bagunçada, se alimentava direito, mas só não se arrumava, pois isto Diana mesma iria cuidar, disto isto pela própria. Ganhou vida quando seu mundo se encontrou com o dela.

Ela voltou como prometido mais e mais vezes. Tornaram-se bons amigos, cuidou dele como devia. Até se sentira atraída por ele, pois ele era realmente bonito. Quase caíra na tentação. Encantou-se com tantas histórias e conhecimentos dele. Parecia uma criança que descobria o mundo através de histórias contadas por um sábio.

Mudaram um pouco a rotina, ela começou a passar mais tempo em casa, para conversar com ele, saia poucas vezes com os amigos, ainda mais que os tempos de baladas haviam morrido um pouco. Ele não precisava ficar sentado naquela mesma cadeira, fazendo as mesmas coisas de sempre, tudo em relação à Diana. Pra que precisava ficar o tempo todo em frente àquela janela, se podiam muito bem conversar através dela?

Dois mundos paralelo que se encontraram e agora, um fazia parte do outro.

Mas aí veio a tragédia. Quando Diana novamente viajou para um de seus longos congressos Renato sofrera um ataque cardíaco de surpresa. Só soube da notícia depois que chegou de viagem, quando Óliver lhe disse aos prantos o que achava que havia acontecido. Desesperou-se e foi correndo à casa dele.

Ao chegar, entrou devagar na casa e foi lentamente, com seu coração acelerado, de encontro com ele, com medo do que poderia ver. Ele se encontrava em sua cama rodeado de fotos e anotações, tudo relacionado a ela. Seu rosto já estava pálido, sua boca roxa e seu corpo estava gelado como a temperatura lá fora. Ao ver esta triste cena, chorou em prantos em cima das fotos e dele. Chorou de tristeza e de ódio. Ódio por saber que sempre fora vigiado por ele e nunca ter sabido disso e por ele nunca ter lhe contado isso, ódio por não ter contado a ele o que sentira em seu coração, algo tão forte e tão bom que agora era convertido em dor, a dor que um dia ele sentira em toda sua vida, que agora era dela, que agora ela carregava, e não haveria cura, apenas feridas e algumas cicatrizes.

No enterro havia poucas pessoas, alguns poucos amigos, alguns poucos parentes distantes. Diana não parava de chorar no colo de Óliver, que a consolava com um aperto no coração por vê-la assim e por ter perdido um grande amigo, depois de tantos anos o ajudando e de parceria, desde que se mudaram, depois da época da faculdade, para a mesma rua, nas casas vizinhas, e tudo aquilo ele lembrava como se fosse um filme passando em sua cabeça, como se estivesse vivenciado tudo aquilo como se fosse hoje, mas hoje era um dia muito triste para uma pessoa muito alegre, até ter encontrado sua obsessão, que agora chorava em seu colo soluçando com o rosto todo molhado de lágrimas.

Óliver, não gostava muito de Diana, por ter deixado seu amigo do jeito que via todos os dias, naquela grandiosa casa, largado no escuro. E apesar de Renato sempre afirmar que era feliz via em seus olhos já cansados, a tristeza da solidão. Depois que Óliver a conhecera via que Renato poderia ser feliz, mesmo com a janela que os separava, mesmo sem nenhum contato, e pôde perceber isso apenas com o carisma que via de longe quando ela e Renato começaram a se falar e a se tornarem amigos.

Rosas atiradas ao caixão junto com a última despedida, a mais dolorosa de todas. O adeus final era dado com o aperto no coração de Diana e de Óliver.

Diana se mudou para a casa de Renato e cuidou de tudo como deveria, deixou tudo como ele havia deixado antes de partir. Olhava tudo que era dele todos os dias, fotos, anotações dela, seus livros, histórias, e tantas outras coisas. Só assim o mantinha perto de si. Era a única maneira de deixá-lo vivo em sua mente, pois em seu coração sempre estaria vivo. Chorava todas as noites na cama em que se deitara com ele apenas uma única vez.

De perto, mas também de muito longe havia alguém por ali, que sempre a via linda, mesmo quando estava desarrumada ou mesmo triste, o que deixava o coração ausente daquela alma do mesmo jeito que ela, triste, mas sorria sempre quando ela sorria e curtia cada momento junto a ela, mesmo estando tão longe, como não queria.

Mas ela não sabia que ele nunca fora embora da Terra, nunca soube que ele sempre esteve em forma de espírito por perto e que só iria descansar em paz quando ela também fosse embora da Terra.

Ela, apenas sentia a presença dele, como se estivesse sempre junto dela, o que de fato acontecia. Pensava diversas vezes se ele não estivesse algum momento ali com ela, vendo o que estava fazendo, organizando suas coisas como ele gostava, entre tantas outras coisas que ela fazia só pensando nele, e ele chorava lágrimas vazias e invisíveis quando ela sempre pensava nele e começava a derramar suas lágrimas no seu delicado rosto.

— Como queria que você estivesse aqui...meu...amor... – dizia para si quase todas noites, em especial quando via fotos deles juntos...

Não agüentando tamanho sofrimento, tanto dele, tanto dela, conseguiu ir buscá-la na noite em que completava o 10° aniversário de sua morte. Com o ar quente, das chamas do incêndio, como o amor que um dia viveram, ele selou o amor daquela vida para sempre...





De 4 de abril/5 de maio a 25 de maio de 2008 (terminado)